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A Extinção dos Contratos na Pandemia do Novo Coronavírus

Atualizado: 15 de jul. de 2020



A EXTINÇÃO DOS CONTRATOS NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO E OS ASPECTOS DA RESOLUÇÃO CONTRATUAL FUNDAMENTADA NA PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS


Por Lineu Botta de Assis Filho


É muito comum na linguagem popular que as partes contratantes se utilizem do verbo “rescindir” quando desejam colocar fim a uma determinada relação contratual.


Ocorre que a rescisão em si é apenas uma das diversas espécies do gênero extinção, sendo certo que o destino de todo e qualquer negócio jurídico é e sempre será, ao final, o seu encerramento, pois como ensina a doutrina civilista, “ao contrair uma obrigação, ao engendrar um contrato, as parte têm em mira, desde o início, a possibilidade de seu término, ainda que não se fixe a priori um prazo para o cumprimento”.[1]


A legislação civil brasileira positivada no Código Civil de 2002 prevê quatro modalidades de extinção dos negócios jurídicos celebrados entre os particulares. São eles:


(i) a extinção em razão da execução completa do contrato, onde as partes cumprem suas respectivas obrigações na avença;


(ii) a extinção em virtude da cessação, a qual se dá com a morte de um dos contratantes nos contratos ditos personalíssimos (como o contrato de fiança e o contrato de prestação de serviços artísticos);


(iii) a extinção do contrato por fato ocorrido ou previsto anterior ou concomitantemente à sua celebração (como na invalidade do contrato por vício do consentimento ou em razão da existência de cláusula de arrependimento ou de cláusula resolutiva expressa); e


(iv) a extinção do contrato por fato ocorrido posteriormente à sua celebração.


É nesta última modalidade de extinção dos contratos que se enquadra o termo rescisão, o qual ainda se divide nas subespécies resilição, que se refere à extinção dos contratos por vontade de uma ou de ambas as partes (neste caso o chamado “distrato”), e resolução, esta última ligada ao descumprimento do contrato por uma das partes. Significa dizer que quando uma das partes não executa as suas obrigações em uma determinada avença, torna-se legítimo à outra parte demandar pela sua resolução.


Na maioria das vezes, a resolução do contrato por inadimplemento se dá por culpa ou dolo de uma das partes, vale dizer, quando ela injustificadamente descumpre as suas obrigações na avença. É o que se denomina de inexecução voluntária do contrato, legitimando a parte inocente a exigir em juízo a resolução do negócio jurídico, com o eventual ressarcimento dos danos materiais e morais decorrentes do inadimplemento. Neste caso, tem-se que a resolução do contrato se configura “um remédio concedido à parte para romper o vínculo contratual mediante ação judicial”.[2]


Contudo, há ainda a possibilidade de o inadimplemento contratual não se amparar em conduta culposa da parte, de modo que o descumprimento de suas obrigações se justifique em razão de caso fortuito ou de força maior. É o que se denomina de inexecução involuntária do contrato, sobre a qual Silvio de Salvo Venosa explica que:


“Nessas hipóteses, há uma causa superveniente ao contrato que inviabiliza o seu cumprimento. A força maior ou o caso fortuito constituem causas objetivas a resolver o contrato. Essas causas podem obstar o cumprimento total ou parcial do negócio. Quando o contrato ainda pode ser cumprido parcialmente, pode o credor manter o interesse em que assim se faça. Não se confunde a impossibilidade superveniente com mera dificuldade de cumprimento. A impossibilidade deve ser examinada no caso concreto. A simples dificuldade é de cunho subjetivo e não serve de escudo para a parte deixar de cumprir o contratado”.[3]


Trocando em miúdos, a inexecução involuntária do contrato se fundamenta na impossibilidade da parte executar as obrigações contratuais a ela impostas em razão de uma causa superveniente - ou seja, surgida posteriormente à celebração do contrato - que foge da esfera subjetiva das partes, decorrente de fatores naturais ou humanos extrínsecos, muito além das escolhas e domínios dos contratantes.


A inexecução do contrato amparada em caso fortuito ou força maior possibilita que a parte inadimplente não seja, em regra, responsabilizada pelo pagamento de quaisquer perdas e danos, salvo na hipótese em que o contrato tenha previamente estabelecido cláusula de responsabilização por prejuízos decorrentes de caso fortuito ou força maior (CC, art. 393), ou quando tais fatores extrínsecos que justifiquem o inadimplemento se operem no momento em que a parte já se encontrava em mora (CC, art. 399).


Note-se que a impossibilidade de cumprimento da obrigação em razão de caso fortuito e força maior deve ser não apenas total como, ainda, definitiva. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves, “a impossibilidade temporária acarreta apenas a suspensão do contrato. Somente se justifica a resolução, neste caso, se a impossibilidade persistir por tanto tempo que o cumprimento da obrigação deixa de interessar ao credor. Mera dificuldade, ainda que de ordem econômica, não se confunde com impossibilidade de cumprimento da avença, exceto se caracterizar onerosidade excessiva”.[4]


A resolução do contrato por caso fortuito ou força maior se opera de pleno direito, nada obstante existir interesse processual para que as partes pleiteiem que a resolução seja declarada judicialmente, cuja sentença tem efeito retroativo, retornando-se as partes ao status quo ante (situação anterior à formação do contrato).


Feitas tais considerações, questão de extrema relevância no cenário político, jurídico e socioeconômico brasileiro diz respeito à influência do novo coronavírus nas relações contratuais e a possibilidade de resolução dos contratos amparada no caso fortuito e sem que a parte seja responsabilizada por perdas e danos.


Não se discute que a pandemia do novo coronavírus vem assolando o mundo e chegou ao Brasil com assustador impacto e velocidade, modificando radicalmente a situação financeira atual e sob perspectiva futura de todos, desde as pessoas físicas mais simples, até instituições com faturamento na casa dos bilhões.


É evidente que a dita pandemia se caracteriza como um fortuito externo e, como tal, pode sim justificar a modificação e mesmo a resolução de uma determinada relação contratual sem que a parte devedora possa vir a ser condenada em ressarcir eventuais prejuízos sofridos pelo credor. A situação deverá ser analisada caso-a-caso, abrangendo as peculiaridades do contrato, bem como suas características e modalidade.


Por exemplo, um contrato de compra e venda a prazo envolvendo valores consideráveis formalizado no âmbito das relações de consumo poderá ser diretamente atingido pela crise do novo coronavírus caso o consumidor tenha sido economicamente afetado pelas consequências da pandemia. Nesta hipótese, caos ele justifique a impossibilidade de continuar pagando pelo produto adquirido, vislumbra-se legítima a resolução do contrato sem que ele seja obrigado a ressarcir quaisquer prejuízos do fornecedor, cabendo-lhe apenas exigir do consumidor a restituição daquilo que ele recebeu.


De outro modo, nos contratos de execução continuada, nos quais as partes pactuam pagamentos mensais em troca da prestação prolongada de um serviço - como nos contratos de prestação de serviços escolares -, a impossibilidade de cumprimento das obrigações em virtude de caso fortuito ou força maior se ilustra meramente temporária e autoriza a simples suspensão do contrato enquanto persistir a pandemia do novo coronavírus, exceto se a situação persistir por um lapso considerável de tempo que torne desinteressante ao credor a manutenção do contrato, inclusive diante das dificuldades financeiras para a manutenção das suas atividades em razão do fortuito.


Contudo, nada obsta ainda que nestes mesmos contratos a prazo ou de execução continuada, caso o credor persista em cobrar os valores pactuados em contrato celebrado antes da deflagração da crise econômica ocasionada pelo novo coronavírus, o devedor venha a pleitear em juízo pela resolução da avença com fundamento na denominada onerosidade excessiva, prevista no art. 478 do Código Civil,[5] cujos efeitos da sentença retroagem à data da citação.


Outro ponto de extremo interesse se refere aos contratos de locação de imóveis urbanos, regidos pela lei n. 8.245/1991 e nos quais as partes contratantes se encontram particularmente preocupadas com as consequências do novo coronavírus. Com efeito, enquanto o locatário procura alternativas para recebimento de renda e busca renegociar o valor do aluguel, o locador convive com a possibilidade de ouvir que o locatário não terá condições de arcar regularmente os alugueres contratados.


Neste sentido, muito embora possa vir a aplicar-se o instituto da resolução contratual por inexecução involuntária sem que o locatário seja condenado à restituição de eventuais cláusulas penais previstas em contrato ou mesmo vislumbrar-se a possibilidade de o locatário requerer a resolução da avença em virtude da onerosidade excessiva, o art. 18 da lei n. 8.245/1991 autoriza que as partes negociem de comum acordo um novo valor para o aluguel, o que a princípio se afigura diante desse cenário de caos um caminho pacífico para solucionar minimamente os problemas enfrentados pelas partes nos contratos de locação. Ainda assim, caso o locador se mostre irredutível em renegociar o aluguel e o contrato de locação em vigência já tenha ultrapassado o prazo de três anos, poderá o locatário pleitear pela revisão judicial do valor do aluguel, com fundamento no art. 19 e nos arts. 68, 69 e 70 da lei 8.245/1991.


Por fim, relevante frisar que está em trâmite no Congresso Nacional o Projeto de Lei n. 1179/2020 que dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitória das relações jurídicas de Direito privado no período da pandemia no novo coronavírus, o qual, se aprovado, poderá resultar em alterações momentâneas em diversos diplomas legislativos, dentre os quais o Código Civil, Código de Processo Civil e no Código de Defesa do Consumidor, bem como em normas de Direito agrário e no Sistema Brasileiro de Concorrência. Dentre as principais alterações legislativas, inclui-se a suspensão da concessão de decisões de despejo até o final de 2020 e a flexibilização das normas relativas aos contratos agrários, além da prisão domiciliar nos casos de inadimplemento das pensões alimentícias.


A crise oriunda da pandemia do novo coronavírus é inédita na sociedade moderna e muitas incertezas ainda imperam nas relações privadas e contratuais regidas pelas normas do Direito brasileiro. Resta aguardar os próximos passos de toda esta grave crise e verificar como o Poder Judiciário lidará com os iminentes litígios contratuais decorrentes dos diversos inadimplementos contratuais que virão a surgir em razão dos problemas econômico-financeiros desencadeados pela grave pandemia.



São Paulo, 1º de abril de 2020


Cleto & Botta Advogados Associados


 

[1] VENOSA. Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 487. [2] GOMES, Orlando. Contratos. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1983, p. 190. [3] op. cit. p. 496. [4] GONÇALVES. Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. Vol. 3. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 192. [5] Art. 478, CC. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.




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